A domesticação vs Antropomorfização

Não é seguro afirmar que o Neolítico trouxe a domesticação, mas é absolutamente óbvio que os nossos antepassados rapidamente perceberam a mais-valia de sinergias com o mundo que os rodeava, os animais não foram exceção. Com esta premissa podemos e devemos partir para uma compreensão da natureza humana na sua relação com os animais, muito mais numa óptica de parceria que em muito nos beneficia, levando a que, no correr dos tempos fizéssemos opções diferenciadas em cada caso, ora acompanham, ora alimentam, ora apoiam no trabalho e na sobrevivência comum.

 

Em qualquer escolha, os animais tiveram e têm um lugar muito claro ao nosso lado, e foi sempre esse, ao lado e do nosso lado, ainda que nem sempre o consigamos compreender, pelo menos não todos nós. Nesta relação, animal-humano, surgiu o conceito de bem-estar que segundo a WSAVA (The world small animal veterinary association) o “Bem-estar animal consiste num bom estado físico e psicológico, social e ambiental dos animais”, a avaliação do bem-estar tem como base cinco necessidades básicas das quais: a necessidade de ambiente, alimentação e alojamento adequado e a necessidade de poder expressar os padrões normais do seu comportamento.

 

Ora, feita esta ref lexão, cumpre viajar aos tempos modernos no mundo da veterinária, principalmente o da enfermagem. Aqui, a noção de comprometimento é por demais evidente, não podendo evitar o contacto próximo com tutores e seus protegidos, companheiros de viagem, muitas vezes os únicos na vida afetiva dos nossos clientes.

 

Na conexão que se estabelece entre humanos e seus animais de estimação, é frequente depararmo-nos com uma humanização de animais de companhia que, relevando o devido respeito, em nada são dignas, passando a merecer um olhar mais atento e, sobretudo, uma atitude esclarecedora. Genericamente, o antropomorfismo define-se como a atribuição de características humanas aos animais ou objetos.


O respeito pelo espaço e pelas necessidades diferenciadas enquanto seres que partilham um mesmo mundo, não podem nem devem ser alteradas, sob pena de mutilarmos o normal e saudável desenvolvimento das espécies e sua evolução no todo. Assim, o ato de domesticar não deve ser confundido com o ato de humanizar, embora separar estas duas ações seja, por vezes, difícil.

 

Hoje, os animais de estimação ocupam um lugar de destaque na nossa sociedade e são vistos como um membro da família. Estes “melhores amigos” que nos acompanham no nosso dia-a-dia ajudam a colmatar sentimentos como a solidão e tristeza ou ausência de objetivos em que os afetos são, porventura, os mais importantes. Há ainda evidência científica que sugere que a obtenção de animais de estimação, diminui o risco de doença cardiovascular em adultos e que em crianças, transporta benefícios cognitivos e de educação. Alguns comportamentos de antropomorfismo incluem vestir o animal, realizar festas de aniversário para o animal de estimação, sentar o animal à mesa, pintar as unhas e o cabelo, usar perfumes, levá-lo a passear em marsúpios ou carrinhos de bebé, serem meninos de alianças em casamentos e realizar perfis de redes sociais para o animal como se de uma pessoa se tratasse. Estes comportamentos têm vindo a aumentar ao longo do tempo e muitas vezes advêm de uma dependência exagerada pelo animal, em que os seus tutores tentam preencher os seus vazios emocionais e psicológicos. O animal é, muitas vezes, visto como um substituto emocional e pessoal, como por exemplo um filho.

 

A antropomorfização pode trazer benefícios para o animal ref letindo maior bem-estar, mais e melhores cuidados veterinários e melhor alimentação, nestes casos notamos também que há uma maior disposição do tutor para enfrentar qualquer despesa financeira, mas não só deste “investimento” vivem os nossos animais. Este fenómeno que não trouxe só benefícios para o animal, mas também para o seu tutor, uma vez que contribui para a sua saúde emocional, revela-se, contudo, profundamente nocivo à evolução natural das próprias espécies, podendo, no limite, ser razão de maior fragilidade dos animais, mais doenças e sobretudo, um fim mais precoce. Senão vejamos. Embora, a antropomorfização seja sinal de amor e cuidado pelos nossos animais, pode também trazer transtornos sérios ao animal, alterando o seu comportamento, qualidade de vida e bem-estar. Temos como exemplos: um animal que realize passeios num carrinho bebé irá ter mais problemas articulares por desuso dos membros; o uso de tintas, vernizes e perfumes podem despoletar alergias além de que pode interferir na socialização; o uso de medicação humana em animais como por exemplo o paracetamol pode custar-lhe a vida.

 

Um animal exageradamente humanizado pode deixar de realizar alguns comportamentos típicos da sua espécie impedindo-os de socializar com outros da mesma, interferindo assim com umas das necessidades básicas de bem-estar. Há, em alguns casos, uma perda de identidade do animal que, pode levar a comportamentos de frustração, stresse e até mesmo de agressividade. Em clínica, podemos ver animais que não querem sair do colo do dono ou da mala pois veem-se como extensão do seu dono e não como animais que são. Aqui o perigo é identificado pelo enfermeiro/a que faz o acolhimento, a quem compete uma postura esclarecedora, amigável, meiga, contudo assertiva. Cabe assim, ao veterinário e enfermeiro veterinário consciencializar o tutor do animal para que sejam criados limites na sua domesticação de forma a não comprometer a saúde do seu melhor amigo.

 

Esta consciência, nem sempre fácil de transmitir a tutores mais fechados sobre si e os seus animais, é uma árdua tarefa que acaba nos ombros do/a enfermeiro/a veterinário/a e na sua condição de obrigatoriedade pedagógica e didática, no mundo das relações da veterinária e os tutores de animais de estimação. Os animais devem ser educados e tratados corretamente de forma a considerar as suas necessidades, não caindo no exagero pernicioso que leva à antítese da intenção inicial.

 

Por isso, por mais engraçado que seja, ver um cão vestido ou até a andar de skate convém não esquecer que estes são animais e temos a obrigação de atender às necessidades da sua espécie, permitindo-lhes uma vida plena e feliz no seu contexto. Aqui sim revela-se o verdadeiro tutor.

 

Alexandra Cardosoin Veterinária Atual

 

*Artigo de opinião publicado originalmente na edição nº 165 de novembro de 2022 da VETERINÁRIA ATUAL