Mãe, mulher e enfermeira veterinária

   Com a revolução industrial e sobretudo com duas grandes guerras mundiais, as mulheres foram inseridas no mundo do trabalho, de forma abrupta numa sociedade em que o conceito de família, era o elo de ligação à estabilidade socioeconómica. Daqui resulta um peso muito considerável da mulher na sociedade atual, onde tem vindo a crescer, a adquirir novas competências, novas motivações e acima de tudo novas responsabilidades, sem que, nunca abandonasse o velho e hereditário peso do matriarcado familiar.

   O exercício de funções profissionais na área da saúde, seja animal ou humana, tem junto da mulher uma complexidade maior, face à sua natureza, esposa e mãe, nesta última, a maternidade e as suas derivações, com inúmeras incumbências que, embora cada dia mais partilhadas, são na realidade maioritariamente vividas no feminino.

   Cumpre, pois, dar ênfase a que as diferenças de género no mundo do trabalho são impostas pela sociedade, pela cultura e educação. Em Portugal, o último estudo realizado pela CGTP com dados da Eurostat, Labour Force Survey, em 2019, concluiu que “as mulheres têm uma participação de 73% no mercado de trabalho aproximando-se da taxa dos homens que é 78%”.

   Ora, o mundo da veterinária, não é exceção.

   Vejamos um exemplo paradigmático, há entrevistas de emprego, que ainda se iniciam por questões, como “pretende ter filhos?”, “ou caso já os tenhamos, se podemos realizar turnos noturnos? “se as férias terão que coincidir com férias escolares” “se podemos fazer horas extras”, etc…

   Será esta matéria abordada sequer, aos colegas do sexo masculino? Fica a dúvida. Embora cada vez em menor quantidade, tais factos são ainda relevantes na contratação de profissionais de saúde, com a particularidade de a enfermagem veterinária ser um mundo maioritariamente feminino.

   Estas questões, levam com frequência maior do que se desejaria à exclusão da enfermeira veterinária, pois a esta, estão associadas licenças de maternidade, licenças de aleitamento, faltas por tratar dos filhos, acompanhamentos obrigatórios diversos, etc. Desta forma a mulher é frequentemente obrigada a adiar o sonho da maternidade, a ter de escolher trabalhar para viver, ou simplesmente exercer a profissão que a apaixona e abdicar de ser mãe presente.

   Embora, nos dias de hoje, a vida familiar seja realizada de forma partilhada, ainda é visto como atributo exclusivo da mulher tratar dos filhos e da casa, havendo alguma admiração quando essas atividades são partilhadas pelo companheiro. Olhando as sociedades nórdicas, percebemos que tal se esbate com regularidade.

   Num aporte ao atrás citado, vem um estudo realizado em 2015, através do inquérito nacional de usos do tempo “…as mulheres ocupam diariamente mais de quatro horas com o trabalho, não pago, das tarefas domésticas, contra cerca de duas horas e meia no caso dos homens…”

   Genericamente o trabalho do enfermeiro veterinário é marcado por turnos noturnos, turnos de 12 horas exaustivas, incluindo fins-de-semana e feriados, turnos em pé o dia todo, muitas vezes apenas com uma refeição, que se fez ao lado daquele animal crítico. Contudo, fazemos um trabalho de amor e paixão. Sem juramento de Hipócrates, a vida do nosso “paciente” está em primeiro, isso nunca ofereceu dúvidas. Por outro lado, é profundamente exigente do ponto de vista emocional pelos laços que se cria com o paciente, pela pressão e exigência que o cliente impõe e pela exposição repetida à morte dos seus pacientes.

   Assim sendo, compatibilizar as exigências que o mundo da enfermagem veterinária acarreta com a vida familiar e social leva a que muitas de nós reequacionem as suas carreiras profissionais. Lamentavelmente esta questão é mais frequente do que seria expectável.

   Desejar estar presente no crescimento dos filhos, ter disponibilidade para os acompanhar nas várias iniciativas que surgem ao longo do seu crescimento, ter tempo de qualidade com a família e amigos leva-nos a procurar opções que possam facilitar a harmonização das várias vertentes da vida. Esta não é uma realidade restrita à veterinária, acontece, contudo, que a carreira de enfermagem tem já um reconhecimento e proteção ao nível da saúde humana, para o qual ainda se trabalha e muito na veterinária.

   De acordo, com um estudo realizado pela CGTP, utilizando dados do Instituto Nacional de Estatística e Eurostat quase 40% das mulheres já interrompeu a carreira para cuidar de filhos, enquanto apenas 8% dos homens o fez.

   Por outro lado, tomar a decisão de mudar de área de trabalho pode trazer sentimentos de desvalorização e insatisfação pessoal, dicotomia que não traz qualquer benefício à vida de um ser humano.

   A dificuldade em conjugar a vida familiar e profissional, a pressão exercida pela sociedade sobre a mulher para que realize todas as tarefas de forma perfeita, a falta de suporte familiar e social, insatisfação no trabalho, sobrecarga de horas de trabalho, etc. criam condições para um desequilíbrio emocional e físico que resulta em fenómenos como stresse, ansiedade, burnout e falta de motivação no local de trabalho. Este fenómeno não é exclusivo do feminino, mas é de muitíssimo maior incidência.

   Portugal apresenta-se no pódio no que diz respeito ao risco de burnout associado, não só, mas também a tempos de trabalhos mais longos, tendo a mulher uma suscetibilidade maior do que o homem para o fenómeno, ora face ao exposto, fácil é perceber porque assim acontece.

Enfatizando desde já uma das questões que mais me preocupa, o sentimento de culpa, este é particularmente violento nas mulheres, porque lhes é atribuído um âmbito de competências e intervenção social vastíssimo, mas que se verifica na enfermagem veterinária de forma muito frequente.

   Este sentimento está relacionado com os horários de turno muitas vezes incompatíveis com os horários escolares, número de horas de trabalho elevadas aliadas ao desgaste emocional não permitem acompanhar o filho nas suas atividades tal como gostariam, sentindo-se a negligenciar as suas responsabilidades parentais.

   Ora, satisfação laboral é um elemento-chave para melhorar o mundo do trabalho no que diz respeito á produtividade, empenho e cooperação.

   Uma conciliação mais harmoniosa das horas de trabalho profissional vs horas de trabalho doméstico seria uma das muitas questões que, no imediato, poderiam contribuir para que a mulheres fossem mais felizes e produtivas no seu local de trabalho. Contudo julgo ser da maior pertinência ver esta matéria no conjunto de inúmeras outras, próximas a todos os profissionais da saúde veterinária e que são limitativas ao feliz e completo desempenho destes trabalhadores.

   Claro que não é só a mulher mãe e enfermeira veterinária que sente estas dificuldades de compatibilização do seu tempo pessoal vs profissional. Podíamos falar do Marcelo que quer fazer Surf com os amigos, mas não consegue compatibilizar o seu horário com o deles, podíamos falar da Maria que gosta de ir almoçar ao domingo com os seus avós, mas trabalha ao fim de semana, do Manuel e do Luís que apesar de serem um casal estão em turnos contrários e não se veem durante a semana, etc.

   Contudo, este artigo é para todas as mulheres mães trabalhadoras que se viram forçadas a reequacionar a sua carreira por forma a serem o que mais gostam…Mães!

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Alexandra Cardoso - Secretário da Mesa da Assembleia Geral da AEVP

in Veterinária Atual